terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Arte Televisão


As séries televisivas foram desde sempre consideradas as primas pobres do cinema. Do cinema sempre se esperou mais do que entretenimento, ficando o entretimento para as produções televisivas focadas na produção de conteúdos destinados às massas, enquanto que no cinema como arte podem existir qualquer tipo de comprometimentos estéticos ou narrativos, no caso das séries esta como conteúdo de massas sofre de pressões da sua indústria. Contudo o novo século veio provar que estas afirmações estão longe de serem totalmente verdadeiras.
Ao pensarmos na produção televisiva nesta década concluímos que a essa mesma produção não necessita necessariamente de comprometer o processo artístico, a prova disso é por exemplo a HBO onde é dada liberdade criativa aos criadores. Por outro o cinema tem sofrido cada vez mais pressões do mercado, e cada vez mais se assiste à estupidificação do cinema de massas, transformando o cinema num produto de puro entretimento. Um exemplo da perca de dignidade do cinema enquanto instituição, é o prejuízo da percepção da sala de cinema enquanto sala de espectáculos, tendo perdido todo respeito anteriormente dedicado a essa sala. Esta noção tem vindo a ser substituída pela noção das salas de cinema, como uma continuação do parque de diversões que são os centros comerciais. O realizador João Botelho tentou resolver esse problema transportando o filme para as salas de teatro. O realizador achava que a sua adaptação do Livro do Desassossego merecia a imponência das antigas salas de cinema, dai esta sua tentativa de recuperar imponência das antigas salas, utilizando prestígio que as salas de teatro ainda possuem.
Voltando atrás às divergências entre o cinema e série televisiva, é importante afirmar a impossibilidade da transferência directa de uma linguagem de um meio para outro, a adaptação de um formato no outro resulta quase exclusivamente na transformação total do formato reafirmando a impossibilidade da intertextualidade dos dois formatos. A verdade é que enquanto linguagem o cinema possui poucas semelhanças com linguagem televisiva. No cinema o argumento, a “história” é secundário o importante é o modo de filmar, um exemplo máximo da narrativa paramétrica é o filme de Robert Bresson “Pickpocket” em que o estilo subjuga a história. Por outro lado a base da narrativa das séries é o diálogo e o argumento, dando muito mais importância à oralidade do que à imagética.
Por exemplo no caso do cinema é o realizador que assina a obra, no caso da televisão quem assina a obra é o argumentista. Isso explica-se porque as séries televisivas estão mais próximas da literatura do que do cinema. Na televisão o papel do realizador é secundário, sendo o argumentista o principal responsável criativo do produto final, enquanto que no cinema o argumentista tem um papel por vezes secundário, sendo poucas vezes referido. As semelhanças entre os estes dois formatos prendem-se quase exclusivamente em termos técnicos. A produção televisiva de autor aproxima-se mais da construção narrativa da literatura em muitos aspectos como o exemplo da divisão da narrativa em capítulos na literatura e em episódios nas séries. A linguagem cinematográfica pressupõe diferenças mais marcadas entre as duas linguagens, sendo a literatura e o cinema linguagem mais remotas. A linguagem cinematográfica parte de um apoio predominantemente imagético, o cinema deve conseguir transmitir a mensagem baseando-se apenas num plano inundado por um sistema signos capaz de transmitir a mensagem. Essa construção narrativa por planos diferencia-se completamente da técnica narrativa utilizada pela literatura. Por outro lado as séries dão importância ao argumento em detrimento da estética da mise-en-scéne. Depois de conseguida a independência entre estas duas linguagens passarei a tentar demonstrar a série com uma arte autónoma.
Mas antes uma pequena comparação entre os dois mídias, o cinema foi arte desde as suas origens, isso é evidente na forma como por exemplo Georges Méliès e Dziga Vertov desde o inicio utilizaram as possibilidades técnicas do cinema na criação de um estética própria passível de ser designada arte. Por outro lado no caso do pequeno ecrã a sua produção no seu início é completamente pensada apenas como entretimento. São recentes os primeiros exemplos de libertação da televisão do simples entretenimento. E alguns desses exemplos foram possíveis graças a migração de talento do cinema para a televisão. Talvez o primeiro a realizar algumas experimentações com esta linguagem televisiva foi Alfred Hitchcock com a sua antologia de thrillers de mistério em “Alfred Hitchcock Presents”. Outro exemplo de experimentação com esta linguagem televisiva autónoma foi em “Twin Peaks” de David Lynch. David Lynch transporta com “Twin Peaks” muitos dos temas por ele já trabalhos no cinema, mas desta vez em conjunto com Mark Frost utilizou as possibilidades deste novo meio para criar novos sistemas de transmissão da mensagem neste meio. Outros dois exemplos de realizadores que fizeram uma incursão na televisão foram Lars Von Tries com “Kigdom” e Krzysztof Kieślowski com “The Decalogue”. Estes dois exemplos embora tenham tido a sua emissão no pequeno ecrã possuem uma linguagem muito presa à linguagem cinematográfica.
Esta transição que aconteceu desde os anos noventa até esta década de conteúdos mais seguros, produzido para as massas para um novo tipo de conteúdos mais arriscados e subversivos, não aconteceu sem contratempos. Por exemplo a série “Profit” lançada em 1996 foi cancelada ao fim de 5 episódios, depois de vários espectadores terem telefonado para a emissora Fox argumentado que o conteúdo da série era demasiado amoral para passar na televisão. Esta série é vista hoje em dia como a precursora de muitas das séries que apareceram anos mais tarde séries como “Dexter” ou os “Sopranos”. Outro dos factores preponderantes para este desenvolvimento do conceito de arte televisão sem dúvida a HBO e a sua politica de garantir aos seus criadores a liberdade criativa que a produção televisiva não tinha até então, permitindo a esses autores o corte com a necessidade de produzir um conteúdo para as massas. Um dos primeiros sucessos da emissora foi a série “Sopranos”,nos três anos que separam o cancelamento da série da “Profit” do inicio de “Sopranos”, o criador da série David Chase conseguiu colocar a audiência a torcer por um pai de família com ligações à máfia de Detroit, este “herói” mata, rouba e viola, mas o público consegue sentir empatia pelo personagem, provando a mudança de consciência do público televisivo. Outro exemplo produzido pela HBO foi a série “Six Feet Under” criada por Alan Ball, “Six Feet Under” é o retrato pós-moderno do seio de uma família de classe média que entra em comunhão com a inevitabilidade da morte. Embora o tema central da obra seja a morte e sua influência nos personagens da série que são donos de uma agência funerária. Alan Ball é um criador exímio de personagens dando importância desmedida ao desenvolvimento desses mesmos personagens. Allan Ball leva o desenvolvimento e crescimento dos personagens ao absurdo mostrando todos os pormenores da vida e dos relacionamentos desses personagens até à morte de todos esses personagens. Mais um dos pontos fortes em “Six Feet Under” é o diálogo, aqui ao contrário do cinema a oralidade e o argumento têm um papel fundamental na construção destes personagens e desta narrativa. Dois outros exemplos produzidos pela HBO, Deadwood e The Wire são mais dois exemplos do roubo do processo literário para a televisão, mais do que construção pensada a fundo dos diálogos, a construção narrativa destas duas séries é em tudo semelhante à de muitos clássicos da literatura. Embora ambas as séries em primeira instância possam pertencer a géneros clássicos como Western ou o Policial, estas duas séries ultrapassam as convenções desses géneros, passando essas convenções a ser apenas um ponto de partida que não se esgotam ultrapassando esses limites até novos planos da meta linguagem.Continuando na HBO, passamos à mini-série “Angels in America”, um dos factos que prova a importância da televisão no meio audiovisual americano é a presença de nomes como Al Pacino ou Meryl Streep nesta produção. Até há uns anos atrás seria impossível imaginar dois actores do seu nível participarem numa série televisiva. Pois esse facto seria considerado suicido profissional. Este é o maior exemplo do papel da televisão na cultural actual. Outra particularidade desta série é o pormenor no genérico onde aparece um filme de Mike Nichols em vez de criado por Mike Nichols.
Mas a produção televisiva não se resume à HBO a AMC conseguiu também produzir séries como Mad Men ou Breaking Bad que mantêm o mesmo nível de qualidade das séries da HBO.
Concluo então garantido que século XXI foi a confirmação deste novo conceito de arte televisão, tendo a televisão se tornado num refúgio para muitos dos argumentistas cansados de Hollywood.

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