segunda-feira, 23 de abril de 2012

Isto já não é um filme.



A obra cinematográfica assinada por Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb, atingiu em 2011 o centro nevrálgico do mundo cinematográfico ocidental. A comoção gerada por Isto não é um filme, não se deveu ao conteúdo da obra mas sim ao contexto que a envolve. Uma pen que traz no seu interior, uma lembrança de um mundo outro, um mundo que prende os seus realizadores por aquilo que estes filmam. O filme de Panahi serviu tanto de chamada de capa de jornais, como de alavanca do discurso libertário demagógico. Perdido no meio deste turbilhão de discursos apócrifos, ficou o teor fílmico de Isto não é filme. Recuperando a obra fílmica, levanta-se a questão da validade da teorização de uma obra de um homem que arrisca uma sentença de prisão. Contudo a obra fílmica deve existir enquanto obra impendente do seu contexto, essa isenção torna-a passível de crítica.

O filme de Panahi constitui-se numa zona imprecisa entre a ficção e o documentário. A linguagem ambígua do filme coloca em evidência a forma do mesmo, reflectindo sobre a formas e esquemas do cinema, poderemos então defini-lo como um filme ensaio? Mas se como o título indica Isto não é um filme, então o que será?

A primeira cena é composta por um plano fixo que identifica Panahi como personagem central da obra. Se o filme se define como um documentário pela sua suposta falta de argumento e ausência de actores, afirma-se ao mesmo tempo como ficção ao accionar uma diegética. Panahi que está impedido de realizar pede portanto a alguém que ligue uma câmara, tentando perverter assim a ordem judicial. Este tipo de jogos de linguagem irá suceder-se ao longo do filme, servindo de questionamento sobre o que é o realizador. As primeiras cenas do filme põem em marcha a engrenagem do dispositivo fílmico. Este dispositivo pressupõe o iphone com o captador da imagem e também como elemento de ligação do mundo exterior e interior. Esse dispositivo não está limitado pelas escolhas do autor mas pelos condicionalismos exteriores. Coloca-se pela primeira vez a questão de autoria, pois se a condição aqui não se trata de uma condição artística proposta pelo autor como no caso do Dogma 95, mas sim um condicionamento autoritário exterior. Esse condicionamento reduz o autor ao quê?

O condicionalismo do plano fixo é ultrapassado através de Mojtaba Mirtahmasb. Mirtahmasb é documentarista que supostamente estaria fazer um documentário, sobre os realizadores iranianos impedidos de filmar. Se Mirtahmasb é o mecanismo que permite a mobilidade da câmara é também mais um elemento da dissipação da autoria de Panahi. O papel de realizador oscila entre estas duas figuras, isso é demonstrado pelo facto dos comandos de Panahi não se efectuarem no dipositivo, sendo uma figura exterior a responsável pela mudança dos planos. Esse é mais um dos jogos de linguagem que se jogam neste filme, a palavra corta é parte integrante do léxico do realizador, logo essa seria uma palavra proibida a Panahi.

Depois de enunciar as regras do jogo, Panahi dá início à encenação do argumento de um suposto filme proibido de Panahi. Panahi torna material o objecto imaterial do cinema, o argumento perde a sua função após a existência física do filme. Panahi utilizando a sua alcatifa como palco põe em funcionamento uma teatralização do seu argumento, sendo que Panahi é voz de todos os personagens. O argumento conta a história de uma rapariga que quando descobre que conseguiu entrar num curso de artes vê a inscrição proibida pelos seus pais, a rapariga vê-se então presa pelas quatro paredes da sua casa. Existe uma forte analogia entre a rapariga e Panahi que a interpreta. Contudo este mecanismo é travado pela incapacidade de realização do mesmo. “Se se pudesse contar um filme para quê filma-lo?”
Este impasse criativo é transformado numa aula de cinema, Panahi caminha então para o filme-ensaio. É introduzido um novo ecrã que reproduz trechos dos filmes anteriores de Panahi. Estes trechos permitem a Panahi afirmar que direcção de um filme não se cinge ao seu realizador, a realização é partilhada pelos personagens e pelo local. Deixa portanto de fazer sentido a ideia da dissipação da realização, passando a existir uma desmultiplicação da realização. Essa desmultiplicação é concretizada ao longo do filme. Quando Panahi entra dentro do elevador com o rapaz que trata do lixo, existe mais uma vez a partilha da realização um individuo exterior.

Outro aspecto na construção deste objecto fílmico é a contracção desse mesmo espaço. O espaço começa por ser um espaço imposto pelo regime autoritário exterior, contudo esse espaço cada vez mais delimitado por Panahi. Quando chega ao elevador o espaço físico está completamente dependente desta máquina que interrompe e bloqueia o avança do filme. Contudo no fim da viagem existe uma dilatação do espaço. O último plano permite observar a realidade ambígua exterior. No entanto a liberdade aparente que permite a percepção desse universo exterior é restringida pelas grades, que garantem o distanciamento entre a câmara e a acção ao ponto da existência de uma ambiguidade daquilo que é filmado.

Panahi constrói uma narrativa que expõe as possibilidades e a fraquezas do cinema pós-moderno, um discurso que tem em conta a democratização da arte em contraponto aos condicionamentos individuais.

Se como refere Godard o documentário é aquilo que tem a ver com os outros e a ficção é aquilo que tem a ver connosco, então este filme é uma obra de ficção. Neste objecto que já não é um filme Panahi constrói uma diegética assente na resposta criadora de um individuo condicionado pelas limitações impostas por uma sistema arbitrário.                 
            

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