A tensão de um inumano fantamástico
materializa-se no corpo sedento de uma efectivação de um prazer carnal. Este
enfrenta a negação desse impulso que o obriga a uma deslocação desta pulsão. É
este o diagrama de pulsões e tensões que Sebastian Meise projecta na tela do
seu filme Stilleben.
Quero ver-te a tomar um duche.
Não te secas. Sentas-te no meu colo.
Eu quero acariciar o teu corpo e enquanto o faço
quero chamar-te Lydia
Estas são as palavras fantasmas que
se ouvem vindas do espaço ausente e se concretizam numa carta que é escrita à
mão. Esta carta será o dipositivo fílmico responsável por causar a fragmentação
dos corpos actuantes na família austríaca descrita pelo filme. A carta escrita
pelo pai implica um jogo entre a ficção e uma realidade outra. Outro objecto
importante na significação fílmica da obra, é a oficina do pai. Um espaço afastado
da realidade, um mundo que permite ao pai uma expressão das tensões inumanas
que o percorrem. Um espaço que representa um retorno a um local antes do tempo,
um espaço intra-uterino. No jogo entre a tensão e a efectivação das
pulsões do personagem principal, a oficina joga um jogo importante na
hierarquização da psicologia do pai. A oficina é o lugar onde estas tensões
podem ser expressadas enquanto realidades das suas necessidades, nunca chegando
contudo a fazer parte do grande mundo. O realizador joga aqui com aquilo que
existe neste lugar interior mas que não se efectiva na sua existência com o
outro. Será que o inumano é inumano se este inumano existir apenas no espaço
interno do homem?
Em termos formais o realizador cria
planos que se perlongam até ao incomodo, estes planos perlongam também as
tensões psicológicas que se formam nos seus actores. Como se observou no início
da diegese Meise usa formas sem ancoragem, aparentemente extradiegéticas mas
que no decorrer da narrativa aparecem ligadas a objectos que as tornam
diegéticas. Este é mais um dos jogos entre a efectivação e o idílico proposto
pelo filme.
Este equilíbrio entre aquilo que é
interno e externo é explicitado quando as fantasias do pai são deslocadas para
uma prostituta. Esta é a receptora da carta com as instruções. A prostituta é o
corpo físico que permite ao pai a realização do seu desejo de possuir a sua
filha enquanto objecto carnal. O desejo é demonstrado formalmente pela luz
vermelha que ocupa o espaço do desejo carnal, existe um jogo entre a luz
vermelha que ilumina a prostituta e a toalha vermelha que seca o corpo da filha
na cena seguinte. O conflito fílmico é despoletado pela descoberta feita pelo
filho do espaço interno do pai, é essa a descoberta que irá gerar a
fragmentação do seio familiar.
A segunda parte do filme lida com
as consequências da revelação feita pelo filho, cada um dos personagens lida à
sua maneira com essa revelação. O filho tem de lidar com a sua condição
enquanto partícula geradora do caos. A mãe por seu lado revela com a sua
atitude a verdade dos seus sentimentos. Os resultados desta descoberta são mais
importantes na relação entre o pai e a filha. A filha descobre o porquê da
impossibilidade de uma relação entre si e o seu pai. A impossibilidade que se
deve à desvirtuação do afecto por parte do seu elo paternal.
Os momentos principais do filme
fazem-se na desconstrução da figura paterna. Existe um movimento que se faz do
interior para o exterior por parte da figura paterna, como na cena em que o pai
surge do interior da floresta a caminho da cidade. A parte inumana do
personagem terá de enfrentar finalmente as construções humanas civilizacionais.
O lugar que anteriormente lhe havia oferecido protecção é violado pela presença
dos seus dois filhos, a violação máxima deste espaço acontece quanto os
fragmentos imagéticos das pulsões eróticas do seu pai são desembalados e postos
em contacto com oxigénio que os corrompe. Na conclusão do filme o realizador
joga a cartada final quando o pai é preso por ter entrado armado num banco.
Esta é a última tentativa do pai reencontrar o espaço hermético que havia
anteriormente controlado as suas tensões. Este é um grande filme em que Sebastien
Meise trabalha com mestria as profundezas do ser humano e aquilo que define o homem e a sua inumanidade,
o eterno jogo entre o claro e o escuro.
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